À distância de um olhar

       Os meus olhos estão cansados. Antigamente eram mais fiáveis, de confiança como se costuma dizer. Trezentas palavras para não dizer nada. A um passo da lucidez mas resvalando para a loucura o ambiente é acessório. O gesto intuitivo, os dedos que mexem não reconhecendo a mão que os agrega. O lado da mão que agarra e o outro lado são ambos lados de uma mesma atitude. A mão estende-se num soluço balbuciando palavras que nunca foram pronunciadas. O corpo cansado e a fome, sempre aquela fome, uma fome que não chega a ser vontade de comer. Pode ser que já o tenha sido mas hoje é só fraqueza, sensação de vazio, necessidade sem vontade, coisa sem intensidade. A distância que me separa do objecto é consequência de uma avaliação. Os meus olhos cansados ajudaram a criar alguma ilusão. O resto foi a minha cabeça que o fez. Pedaço de mim mesmo que ela junta tentando um puzzle sem instruções. Não interessa o resultado final, apenas o tempo perdido a juntar peças, o cansaço dos olhos, a dor nas costas, o torpor da mente. Mexo uma perna de cada vez, um bocado de cada vez, uma espécie de caniços secos e quebradiços que se tentam em movimentos desarticulados. Toda uma atitude desengonçada que se espasma numa deslocação errónea, quiçá delirante. Alguém que descubra sentido na acção. Alguém que lhe dê sentido se quiser, se for de jeito ou de vontade ou somente por maldade, descredito de má-língua, justificação mal fundamentada, algo assim como que mais ou menos com tendência para o menos. Palavras e mais palavras que ficam cada vez mais distantes, mais ilegíveis. O que fazer quando tudo à nossa volta se torna ilegível? Será que preciso de aprender a ler outra vez ou isto é apenas fingimento, arremedo de criança velha e mimada que tenta tapar o sol com a peneira não disfarçando uma perversa satisfação pelos raios luminosos que lhe alumiam os olhos num encadeamento dormente, afago morno de mão invisível. Estou sentado e vejo os meus netos brincar no jardim municipal. Estão à distância da minha ilusão. Penso que o meu corpo deitado numa cama mas eu já não sou alma de certezas.  Tenho o olhar cansado e as distâncias são coisas a que já dei importância. Hoje a memória aproxima o que o tempo afastou e essas distâncias ficam dependentes de um olhar diferente, um ver para dentro, por dentro da coisa que eu sou, do homem que eu fui. Tenho uma sonda no braço, já quase me tinha esquecido dela. Sei que é necessária porque uma vez uma voz zangou-se por ela se ter libertado do meu braço. Perguntou-me se eu queria morrer. Não tive coragem para lhe dizer que não era pergunta que se fizesse, não tive paciência para o diálogo que poderia decorrer da minha observação. Já não tenho muita paciência. Coisa estranha a paciência. Quanto mais tempo tenho menos a possuo. Eu já sou velho e não confundo alheamento com paciência. Confundo outras coisas mas isso não. Tenho saudades do meu filho, da minha nora, de alguém. Nunca me imaginei preso, fechado por fora e por dentro. Nunca imaginei que isso me pudesse ser benéfico, que o meu pretenso bem-estar pudesse servir de justificação para tal atropelo. Olho sem ver a televisão ao fundo quarto. Não é bem olhar, é mais ouvir. Fica tudo tão perto quando fecho os olhos.  

 

(à memória... à distância de um olhar)

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